Mulheres nas mesquitas (masjid)

Lenços nos cabelos, segredos mágicos nos olhos e fé no Islã

maria eduarda antonino
7 min readMay 4, 2021

A fé da mulher muçulmana aparece e projeta-se no universo como um fator de condução muito importante, influenciando vários aspectos de suas vidas, inclusive a vida cívica e política. A fé no Islã é vetor de ação, não só de submissão. A pluralidade em todas as suas formas é antes de tudo uma realidade entre as mulheres muçulmanas. É um fato, uma oportunidade, uma riqueza e deve ser cultivada. Assim como ser uma mulher cristã também é indicativo de pouco, uma insuficiência que pode se desdobrar em várias competências, ou seja, são mulheres da fé cristã em várias localidades, com várias trajetórias e uma infinidade de formas de olhar o mundo, o inverso também é verdadeiro — plural. Somos várias quando afirmamos que somos feministas, mas em nenhum momento podemos dizer que somos todas. Somos apenas as feministas. O mesmo acontece quando eu afirmo que falo junto/com as mulheres muçulmanas, não falo perto de todas, falo através do reconhecimento de que não existe um bloco homogêneo fechado, selado, lacrado de mulheres muçulmanas que pensam da mesma forma. As mulheres muçulmanas com as quais cruzei reconhecem suas lutas dentro de um projeto social feminista, antirracista e decolonial, que por sinal, é o mesmo que o meu.

Ainda que a realidade contemporânea — ao redor do universo— seja marcada pela maior visibilidade das mulheres no espaço público, inclusive as muçulmanas, em alguns contextos nacionais e culturais existe a necessidade de uma maior inclusão das mulheres muçulmanas nos espaços de adoração, ou seja, nas mesquitas. A contínua exclusão das mulheres das mesquitas quando contrastadas com sua rápida inclusão em outras formas institucionais não só danifica o tecido social e espiritual das comunidades muçulmanas, mas também reforça a percepção de que espaços de oração não estão mantendo o ritmo com mudanças culturais e institucionais. A articulação por mesquitas inclusivas (isso engloba a luta por mesquitas igualitárias)é parte viva do movimento feminista islâmico. Dentro dessa articulação, existem trilhas paralelas que estão em plena combustão, de um lado, algumas mulheres muçulmanas buscam a mudança de dentro, elas exigem poder participar das mesquitas tradicionais já existentes; por outro, existe uma construção exterior, onde mulheres muçulmanas preferem começar novos espaços de adoração, criar novas mesquitas, rejeitando esse tradicionalismo institucional impenetrável, como uma avenida para engajamento público, ao invés de integrar-se em formas organizacionais existentes.

Um importante ato que marcou a luta das mulheres muçulmanas por mesquitas inclusivas no Ocidente foi em março de 2005, quando a feminista Amina Wadud conduziu uma oração de sexta-feira em Nova Iorque. Isso gerou uma controvérsia dentro da comunidade muçulmana por o imã[1] ser uma mulher, Wadud, que também proferiu o khutbah, ou seja, o sermão que habitualmente antecede a oração. Além disso, a congregação a que ela se dirigiu não estava separada por gêneros. Este afastamento da prática ritual estabelecida tornou-se um desempenho corporificado de justiça de género aos olhos de seus organizadores e participantes.

Amina Wadud conduz uma oração em congregação no ano de 2005, na Synod House da Cathedral of St. John the Divine, em Nova Iorque.

Também em 2005, Raheel Raza liderou em Toronto a primeira oração de sexta-feira, entregando o khutbah e liderando as orações da congregação mista (homens e mulheres juntos). O evento foi organizado pelo Congresso Muçulmano Canadense para celebrar o Dia da Terra. A mesquita Mariam em Copenhague, fundada por Sherin Khankan em fevereiro de 2016, tem apenas imams mulheres, a mesquita está aberta a adoradores homens e mulheres, com exceção das orações de sexta-feita, que só estão abertas para as mulheres. Em 2018, Jamitha, uma mulher de 34 anos Imam, liderou a oração de sexta-feira em Malappuram, Kerala, se tornando a primeira mulher Imam na Índia a liderar uma oração.

Talvez existam tantas formas e formatos de Mesquita ao redor do mundo, como são as experiências das mulheres dentro delas. Mas, de forma geral, o acesso, gerenciamento e atendimento aos lugares de adoração, muitas vezes assume formas de gênero. Os desequilíbrios de gênero nas mesquitas manifestam-se em padrões de gestão e atendimento e é refletido nas instalações disponíveis. As mesquitas são consideradas e sentidas como “clubes de oração para homens”. Uma pesquisa feita nos EUA pela Islamic Society of North America (2011) mostrou que duas em cada três mesquitas exigiam que as mulheres rezassem em uma área separada. O estudo ainda mostrou como é comum a várias mesquitas relegar as mulheres nos quartos pequenos, isolados, sem ar e segregados com seus filhos. Algumas mesquitas no Canadá e nos Estados Unidos impedem a entrada das mulheres; outras discriminam as mulheres, negando-lhes os direitos de associação e votação. Também se verificou que quando são convidadas a assumir papéis gerenciais em programas da masjid, muitas vezes são papéis limitados a cozinha e a limpeza.

Fonte: SideEntrance, foto da sinalização "Espaço de orações das mulheres (Porão)".
Fonte: SideEntrance, mulheres rezando de forma segregada na parte de cima da Mesquita.

A Mesquita é uma das mais importantes instituições na comunidade islâmica e desempenha um papel fundamental na vida quotidiana dos muçulmanos. Mesquitas são vistas como o coração das comunidades, e cada vez mais elas também estão sendo percebidas como centros de atividade social e política.Por isso, surge no interior da comunidade muçulmana, Oriental e Ocidental, inúmero projetos que demandam uma participação igualitária dentro das mesquitas. Um desses projetos e a Inclusive Mosque Iniciative (IMI), quedesde a sua criação, a organização se espalhou rapidamente, pelo Reino Unido e internacionalmente para a Malásia, Caxemira, Paquistão e Zurique. É um ativismo com intuito de promover um local de culto para a prática de um Islã inclusivo. Na realidade, isso significa dizer que os eventos e espaços da IMI estão organizados para serem tão abrangente quanto possível e receberem quem desejar estar lá; ao contrário de muitas mesquitas existentes, o IMI não é dividido ao longo das linhas linguísticas, inter-religiosa, políticas, étnicas ou de gênero. A organização faz todos os esforços inclusive no acesso físico, atendendo a pessoas com deficiência em seus locais, disponibilizando o British Sign Language (BSL) dentro de seus serviços e dando as traduções de palavras em árabe quando usadas (Site http://inclusivemosque.org/).

As principais pautas das mulheres muçulmanas em relação as mesquitas se estruturam na busca de:(a) tornar disponível espaço designado para as mulheres no salão principal de oração, mas como orar junto dos homens não é uma reivindicação de todas as mulheres, (b) fornecer um espaço separado para as mulheres que precisam ou preferem maior privacidade; (c) quando existir espaços separados esses precisam estar equipados e organizados para que as pessoas possam ouvir os oradores corretamente, investimento e manutenção dos sistemas de som e vídeo; (d) garantia de que os espaços compartilhado e separados são limpos, confortáveis e esteticamente agradável; (e) incentivar os homens, mulheres e crianças a participar da manutenção dos espaços; (f) fornecer entrada para as mulheres pela porta principal; (g) inclusão de acesso físico (cadeirantes e pessoas com requisitos de visão e audição não são adequadamente previstas na maioria das mesquitas); (h) não obrigatoriedade do véu.

As mulheres muçulmanas são sempre reduzidas a um silêncio paradoxal. Continuamos falando sobre elas, mas nunca com elas. É sempre na base de muito achismo, fetichização e exotização. Não que minha aproximação para com elas seja isenta de qualquer cegueira ou convicções. Mas, conversar com uma Outra mulher só é possível se a gente conseguir trocar as lentes, mudar a gramática, girar no ar, pois, a visão sempre depende muito do lugar em que estamos. Só quando me coloco em outro lugar eu consigo ver o que não se pode ver. Depois de muito já dialogar com mulheres muçulmanas, sigo misturando, confundindo, me equivocando sobre os saberes, sobre as cosmovisões, sobre a religião, sobre as lutas. Mas, sigo sem nenhuma pretensão de perseguir a minha verdade. Sem nenhuma pretensão de findar os diálogos. Sigo, tentando me encontrar através das histórias de outras mulheres. Dessa forma, compreendi que nesse percurso uma história que não é nossa pode nos falar muito de quem somos, para onde vamos, se podemos ir juntas, por isso, sigo pesquisando junto com as mulheres de fé que vivem sob signos opressivos como os meus, mas que juntas construímos diariamente uma inteligência sociopolítica e de paixão ao mundo.

Saiba mais:

SideEntrance: É um projeto de fotos de mesquitas ao redor do mundo, mostrando os espaços sagrados das mulheres, em relação aos espaços dos homens. Mostramos o belo, o adequado e o patético. https://sideentrance.tumblr.com/

[1]Imãs são parte do setor do clero, análogo aos padres e rabinos e assumem o seu papel na Comunidade em virtude de serem conhecedor de leis e as maneiras do Islã. Qualquer muçulmano conhecedor pode cumprir o papel do Imam. Conhecimento significa poder, e esse poder do conhecimento é reconhecido pela Comunidade (Al-Hibri, 1995).

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maria eduarda antonino

PhD student in Sociology at the Federal University of Pernambuco (UFPE/Brazil). Research interests: religion and politics; feminism; gender.